

evolução urbana de roma

Quando caminhamos pelas ruas de Roma, estamos o tempo todo atentos às marcas de seus quase três mil anos de história que se entrelaçam e se sobrepõem compondo essa magnífica planície de cúpulas, telhados e ruínas que conhecemos hoje. Tudo em Roma de alguma forma se conecta e evolui em uma linha contínua que atravessa os séculos.
A Piazza Navona , por exemplo, segue perfeitamente os contornos do estádio construído pelo Imperador Domiciano em 86 A.D. para abrigar os Jogos Capitolinos; ou ao passar na Via del Arco della Ciambella vemos uma imensa estrutura que surge por entre os edifícios e sabemos que aquilo é tudo o que sobrou das monumentais Termas de Nero que havia lá; O Circo Máximo, onde até 150 mil espectadores se reuniam para assistir as corridas de biga é até hoje um espaço de grandes eventos, concertos e manifestações; as famosas estradas Consulares – Appia, Nomentana, Cassia, Flaminia, Aurelia que deram origem ao ditado “Todos os Caminhos levam a Roma” ainda estão lá - as estradas modernas seguindo o traçado das antigas. Bastaria cavar uns dois metros para encontrarmos as grossas lastras de pedra de que foram feitas. A Appia Antica, aliás, é um testemunho vivo de como eram essas estradas.

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Origens
Diz a lenda que Roma nasceu no morro Capitolino, um das sete colinas originais. Fundada por Rômulo, um dos gêmeos que foram alimentados pela loba. De lá, no vale formado entre as colinas, surgiu o Foro Romano - desde o início com vocação para um local de encontro e debates políticos. As reuniões ou assembleias entre as diversas tribos que habitavam as colinas deram lugar ao centro nervoso do poder imperial, com inúmeros templos e basílicas, colunas, estátuas, e prédios da administração pública.
No auge de seu poder, Roma abrigava cerca de um milhão de habitantes, e é por isso que os Muros do Imperador Aureliano (os Muri Aureliani), construídos quando o império dava os primeiros sinais de decadência, se estendem por mais de 18 quilômetros cobrindo uma área de quase 14 quilômetros quadrados. Mas depois das invasões bárbaras, a cidade, reduzida a menos de 30 mil habitantes, os aquedutos danificados, espremeu-se às margens do Tevere para facilitar o acesso à água, de onde gradualmente voltou a se expandir, só recuperando os números populacionais do século I depois da unificação italiana do século XIX.
Por essa razão durante muitos séculos o Foro Romano e toda a área que se estendia até os muros ao norte e a oeste do foro permaneceram abandonados, suas imponentes construções sendo aos poucos desmanteladas, seus mármores roubados, suas colunas levadas para reaproveitamento nas construções da nova ordem, as igrejas cristãs. Não por acaso, até o século XIX o Foro Romano era chamado de Campo Vacchino (Campo das Vacas) e uma das encostas do Capitólio era conhecido como Monte Caprino (das cabras); a Via Veneto e arredores permaneciam desabitados.

Durante boa parte da idade média, as poucas famílias poderosas que restaram se encarapitavam em torres que reaproveitavam fundações ou materiais antigos edifícios. Era a “Roma Turrita”. Sobraram poucos exemplares dessa época, mas o Teatro di Marcello, situado bem em frente às escadarias do Campidoglio, é uma boa demonstração desse uso. Muito cedo transformou-se em fortaleza, sendo habitada por membros da família dos Fábios, e foi mudando de mão ao longo dos séculos até chegar à família dos Savelli e posteriormente dos Orsini. Hoje, o que se vê são os arcos superiores do Teatro sustentando muros medievais que por sua vez apoiam o Palácio Renascentista Savelli-Orsini. Outro grande exemplo de reuso de estruturas imperiais é o imenso mausoléu do século I do Imperador Adriano, que foi transformado no Castel Sant’Angelo, uma fortaleza do papado que permaneceu inexpugnável por muitos séculos.
As muitas insulas, apartamentos de 4, 5 andares e prédios públicos abandonados foram sendo incorporados às novas construções que se erguiam sobre os escombros da cidade, e não é raro encontrar entranhado em um palácio do século XVI, por exemplo, paredes de tijolos da cidade imperial, ou até mesmo as telhas de barro reaproveitadas!

Teatro di Marcello
O Campidoglio, que desde os primórdios foi escolhido como o epicentro da cidade, inclusive por suas encostas íngremes que permitiam defendê-la, permaneceu como centro cívico e religioso. Os templos e vastas estruturas como o arquivo público de Roma (Tabularium) foram substituídos por igrejas e fortalezas, que por sua vez deram lugar, no Renascimento, à magnifica praça pavimentada em forma de estrela onde, bem no centro, ergue-se a estátua equestre do estoico Imperador Marco Aurélio. Dizem que essa estátua, aliás, só sobreviveu porque por muitos anos pensavam retratar o primeiro Imperador cristão, Constantino. A escadaria, a praça e os vários palácios que a circundam são projeto de Michelangelo, e abrigam os Museus Capitolinos. Sobre sua vastíssima coleção não cabe falar aqui, mas alguns pontos altos merecem uma menção: a estátua do gaulês morrendo e o colossal Hércules de bronze dourado.
Muito especial também é um mosaico proveniente da Villa Adriana em Tivoli, a 30 km de Roma, onde o imperador Adriano tinha sua casa de verão. Os cacos minúsculos de pedra formando com detalhes de riqueza impressionante o quadro de umas pombas pousadas numa bacia de cobre ou ouro. Não acho que tenha havido, nem antes nem depois, virtuosismo comparável na arte de mosaicos.


Alguns dos templos pagãos foram reaproveitados como igrejas cristãs, como foi o caso do Pantheon. Outras igrejas medievais de Roma foram construídas sobre áreas que tinham significado religioso, como a Basílica Constantiniana de São Pedro, erguida sobre o túmulo do apóstolo, ou como tantas outras construídas sobre casas romanas que tinham servido de local de encontro dos cristãos primitivos. Mas essas igrejas foram, em sua maioria, descaracterizadas com decorações posteriores, da época do Renascimento e do Barroco. Algumas fogem, ainda que parcialmente a essa regra, como a Igreja de Santa Maria Sopra Minerva, construída nos anos 1270. Esta, situada bem perto do Pantheon, vale a visita.
A discreta fachada renascentista não nos prepara para seu interior magnífico, onde está enterrada Santa Catarina de Siena, e que faz dela a única igreja gótica de Roma. Seu nome também dá testemunho da sucessão de camadas que compõem o tecido urbano de Roma: foi construída sobre um templo dedicado à Deusa Minerva.


Renascimento e Barroco
O movimento humanista que marcou o fim da Idade Média foi o Renascimento, nascido em Florença, no século XIV. É um período de profundas transformações onde a emergente visão antropocêntrica do mundo abriu caminho para a ciência e para o resgate do legado da antiguidade clássica. Agregou artistas e pensadores de qualidade inigualável: Galileu, Machiavel, Rafael, Michelangelo, Bramante, Da Vinci, Dante... a lista é imensa.

O homem de Vitrúvio, de Leonardo da Vinci, ícone do Renascimento.
Com a resolução em favor de Roma do cisma papal de Avignon em 1414, a cidade volta a ser o centro cultural de onde dissemina o Renascimento por todo o mundo ocidental. Onde havia torres e casas medievais em becos escuros, são abertas ruas mais largas (Via del Corso, entre outras) e surgem palácios e igrejas inspirados na estética da antiguidade clássica. As fachadas do Palazzo Farnese, Palazzo Madama, Palazzo Massimo alle Colonne são exemplos.
Desse período podemos ressaltar na arquitetura as obras de Bramante, icone da arquitetura do Renascimento. É dele o famoso Tempietto, inspirado nos templos pagãos, no local onde a tradição diz foi crucificado São Pedro e, claro, a própria Basílica de São Pedro, ou pelo menos os projetos iniciais dela, embora ao longo dos quarenta anos de sua construção tenha tido muitos grandes arquitetos trabalhando nela, como Michelangelo, que desenhou a cúpula.
Uma obra pouco visitada de Bramante, mas de fácil acesso, é o Cortile da Chiesa della Pace, que fica atrás da Piazza Navona. É um pátio não muito grande, mas as proporções clássicas refletem na perfeição a busca do resgate da arquitetura clássica.



Aos poucos o classicismo do Renascimento foi dando lugar às curvas e exagero do Barroco.
Difícil aqui ficar tentando contextualizar o Barroco, que nos deu tantos grandes artistas. Em Roma, três nomes se destacam: Bernini , Borromini e Caravaggio. Do Caravaggio falo em outro texto. Dos outros dois podemos dizer que eram polos opostos: o primeiro, além do talento inigualável, era rico, bonito, e soube transitar com muito sucesso na sociedade da época. O segundo feio, torturado (acabou se suicidando) mas igualmente genial. Seriam rivais, como é inclusive ilustrado na lenda urbana que dá conta de um personagem da Fontana dei Fiumi, do Bernini, se esquivando horrorizado da fachada da igreja de Sant’Agnese, de Borromini, na Piazza Navona. Lenda mesmo, porque a fonte precede a igreja em mais de dez anos, pelo que soube.
De Bernini, escultor incomparável recebemos algumas das maiores obras primas do barroco, como a grandiosa colonatta que circunda a Praça São Pedro, a Capela Cornaro na Igreja de Santa Maria da Vitória, e o Rapto de Proserpina na Galleria Borghese com o detalhe impressionante das mãos de Plutão enterrando os dedos na carne da ninfa.

O legado de Borromini é igualmente notável. Entre as muitas igrejas de formas complexas e fachadas sinuosas que projetou podemos citar, por exemplo, Sant’Ivo alla Sapienza, San Carlo alle Quattro Fontane, e o oratório dos Filipinos. Também foi responsável por alguns elementos de nossa Embaixada como o desenho em três partes da fachada e a Sala Palestrina da qual ele muito se orgulhava porque seu imenso vão era vencido com um sistema de tirantes de ferro junto ao telhado que dispensava os contrafortes. Aliás, nossa embaixada na Piazza Navona é um grande exemplo de palácio barroco. Construído pelo Papa Inocêncio X Pamphilj, e por sua cunhada, a famosa Dona Olímpia, tem, além das contribuições do Borromini, uma galeria com um dos tetos mais importantes da época: a Galeria Cortona, que de noite pode ser vista desde a praça, já que nossos embaixadores mandam deixar a luz acesa até as dez da noite, para deleite dos passantes.




Um outro aspecto interessante de Borromini que o aproxima do Brasil é o livro que eescreveu sobre sua obra, o Opus Architectonicum. Dizem que nosso Barroco sofreu uma forte influência da sua obra porque os jesuítas teriam trazido o livro dele para o Brasil, e suas ilustrações teriam servido de modelo para nossas igrejas. E por falar em Jesuítas, um exemplo que ilustra muito bem a filosofia do Barroco é o teto da Chiesa del Gesú, “Triunfo do nome de Jesus”. Obra de Giovanni Battista Gaulli, é uma perspectiva geométrica que produz uma ilusão de ótica que eleva nosso olhar ao infinito.
Exemplos do Barroco, valem a visita os palácios Barberini, que hoje abriga parte da coleção de arte antiga, Corsini (coleção da família doada ao Estado italiano), Doria Pamphilj (museu privado que preserva as coleções da família, muitas das quais provenientes do Palácio da Piazza Navona) e a Villa Borghese, no centro do parque de mesmo nome, que expõe a coleção do Cardeal Scipione Borghese
Eu acho que não preciso falar dos movimentos que se sucedem ao Barroco, mas vale mencionar o boom urbanístico que ocorreu depois da Unificação Italiana quando se desenvolveram bairros inteiros como no Flamínio, no Prati e nos arredores da Via Veneto. Também nesse contexto, o Monumento a Vittorio Emanuelle II, construído entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, que não é muito apreciado pelos Romanos. Eles reclamam especialmente do mármore branco trazido de Bréscia, que segundo dizem contrasta violentamente com o travertino local e as cores mais quentes da cidade.



Por fim, outro momento que transformou a paisagem da cidade, foram os anos do fascismo de Mussolini. Empenhado em resgatar a grandeza dos tempos do império, ele demoliu quarteirões inteiros para trazer à luz os monumentos da antiguidade. Chegou a deixar a céu aberto um pedaço da Piazza Navona, que acabou recomposto em razão dos protestos generalizados, a área do Largo Argentino com os três templos republicanos e a região do Mausoléu de Augusto, símbolo maior dos tempos áureos.
Promoveu também algumas demolições para abrir avenidas como o Corso Rinascimento. Também construiu um bairro italiano inteiro, com a estética Fascista, o EUR. Felizmente o desfecho desfavorável ao fascismo ao fim da Segunda Guerra mundial pôs fim às demolições.
Desculpem o tamanho do texto. Não era minha intenção. A gente começa a escrever sobre Roma e não para mais. E, como já se disse, Roma non basta uma vita.
De resto, gostaria de apresentar aos que chegaram até aqui um texto de um jornalista muito famoso da resistência italiana, Indro Montanelli, sobre a Piazza Navona para onde se mudou vindo de Florença, e explica como foi que passou de Florentino que esbravejava sobre a sujeira, os moleques, a feira, enfim, a balbúrdia que segundo ele maculava a imponência dos prédios barrocos, para a compreensão de que aqueles palácios são apenas um pano de fundo para a vida que pulsa há mais de dois mil anos naquela praça, ponto de encontro dos tipos humanos mais díspares, da princesa ao mendigo, que é o que realmente define o espírito dessa cidade extraordinária.